quinta-feira, 25 de junho de 2009

Tempestade - um conto de Denis Cruz


Luiz semicerrou os olhos para fitar o ensolarado azul do céu. Afrouxou a gravata de seu terno cinza e olhou com desdém para o belo dia. Não queria que o Sol estivesse ali, tão belo, tão radiante. Queria um céu fechado, tempestuoso. Assim poderia andar pela chuva e disfarçar suas lágrimas nas águas. Até mesmo o clima afrontava sua vontade. Sentou-se num banco vermelho desbotado do ponto de ônibus, colocando a pasta de couro negro ao seu lado.

Já havia algum tempo que estava sem carro e até a grana para o ônibus era sua esposa quem lhe dava. Uma maré de azar, como diriam alguns. Maré não atropela; poderia ser mais adequado chamar, como dizia Luiz, de "Jamanta de azar". Esta, sim, veio com tudo, estraçalhando e destruindo o que estava a sua frente.

Ali, sentado no banco, estava só a carcaça de Luiz, cabisbaixo e sem expectativa de futuro. Perdeu tudo: emprego, crédito, carro. Uma sequência de eventos que pareciam previamente agendados para desgraçar sua vida.

Sobrou-lhe pouco, quase nada. Já não aguentava mais a pressão de amigos, familiares e esposa perguntando sobre quando conseguiriam retomar a vida que levavam antes. A esposa, Guida, era uma heroína à parte. Havia assumido as despesas da casa com um trabalho humilde, mas que garantia o sustento das necessidades básicas da família. Diferente de Luiz, não abandonou a fé que tinha; ao contrário, buscava Deus com muito mais intensidade e orava pelo marido, pois via o quanto ele estava abatido.

Luiz se lembrou de como era bom fazer os gostos e caprichos da esposa quando a empresa lhe dava um bom retorno financeiro. Mas isso foi antes das dificuldades; antes da quebra total e falência.

Suspirou. Faltavam-lhe forças para erguer-se do banco e entrar no circular à sua frente. Luiz tinha acabado de levar três "nãos" naquele dia para pedidos de emprego. Estava difícil sustentar o próprio corpo.

Levantou-se arrastando os pés - até a velhinha ao seu lado superou sua velocidade e furou-lhe a frente. Passou a roleta - não sem antes contar as moedas para pagar a passagem - e sentou numa poltrona bem ao fundo, com a pasta negra no colo. Não pensava em nada no sacolejo constante do circular, indo para o bairro bem mais nobre que aquele em que anteriormente morava.

Luiz desceu em seu ponto, andou três quadras e se arrastou pela escada que levava à entrada de seu atual apartamento com um módico aluguel - arrependia-se amargamente em ter vendido a casa para saldar dívidas da empresa. Na época, acreditava que em pouco tempo se reergueria e conseguiria comprar uma boa casa. Enganou-se completamente.

Passou pela sala com móveis bons - aqueles de que Guida não quis se desfazer. Eduardo, de onze anos, estava estirado no sofá assistindo desenho sem qualquer moderação. Sons de socos e gritos vindos da televisão enchiam toda a casa.

- Oi, pai - disse Eduardo, enquanto Luiz passava.

- Oi, filhão - respondeu com um muxoxo.

- Oi, papai - gritou Bia, a filha mais nova de não mais que quatro anos.

Pulou no colo do pai e o abraçou, balançando em seu pescoço.

Delicadamente, Luiz afastou a filha, dando um beijo de agrado em seu rosto. Continuou seu caminhar para o quarto. Trancou a porta e, desolado, sentou-se na cama; os ombros caídos com o peso do desânimo. Apoiou os olhos fechados nas duas mãos.

Um turbilhão de coisas passava em sua cabeça. Sua vida confortável de antes; as dificuldades de hoje; as contas que estavam vencendo uma atrás da outra; a beleza de Guida que ia se endurecendo juntamente com a carga que agora lhe era imposta; as consecutivas recusas nos empregos a nas tentativas de reestruturar seus negócios; as crianças não tendo mais o conforto que ele podia dar anteriormente - Eduardo agora estudava em escola pública e Bia já não ia mais para a creche, dependiam quase de um favor da vizinha para cuidar dela durante o dia, pois ela cobrava quase nada por tal tarefa.

Uma lágrima finalmente molhou-lhe os olhos escuros e, na penumbra do quarto, deixou a tempestade de sentimentos inundar seu coração. Chorou em silêncio. Sem soluçar, lágrimas desceram de seu rosto, formando as gotas da tormenta em sua vida.

Luiz se sentia um completo inútil, sem saída, sem esperança, sem futuro. Só havia uma solução, pensava ele, sem se lembrar do Deus que um dia servira.

Abriu a pasta negra que trazia consigo. Dali tirou uma arma velha, de ferro negro. Olhou pacientemente para ela, sem qualquer expressão no rosto. Ali estava a solução que aquele moribundo planejou para seus problemas.

Engatilhou e, decididamente, enfiou o cano na boca. Seus olhos se fecharam com força e os sentidos esperaram o som que anunciaria a despedida daquela vida.

Toc, toc, toc! Ressoou a porta de madeira, acompanhada da voz pueril de Bia:

- Papai, papai - chamava ela, - quero falar uma coisa.

Luiz abaixou a arma e a colocou no colo. Controlou a voz trêmula e disse:

- Filha, eu estou ocupado.

- Mas eu quero falar uma coisa. Abre a porta, papai.

"Nem mesmo para resolver o último dos meus problemas eu consigo sossego", pensou Luiz e sentiu um rancor infinito oprimir-lhe o peito. Parecia que nada dava certo e era interrompido até mesmo no ato de tentar acabar com a própria vida. Mas esse homem não sabia que, naquele momento, ele estava no centro de um grande conflito e que Deus estava atuando de forma simples, mas poderosa.

- Diz daí mesmo, Bia! - disse com autoridade na voz. - Eu estou ocupado e não vou abrir a porta.

- Tá bom. - respondeu a criança com voz angelical, sequer se importando com a autoridade na voz do pai (não tenho dúvida de que havia anjos ao seu lado) - Eu quero falar que te amo. Eu te amo, papai.

Um nó amarrou na garganta de Luiz. Não conseguia engolir nem respirar. Tinha algo preso ali que parecia não conseguir se soltar. Olhou para arma em suas mãos e pensou na frase da criança lá fora - "Eu te amo, papai".

Não pôde mais se conter. Chorou copiosamente, deixando a respiração ser guiada pelas torrentes dos soluços constantes.

Não havia perdido tudo, afinal. Condenou seus pensamentos. Como ele poderia ter pensado numa "solução" tão covarde, tão egoísta? Como pôde ter pensado em tirar a vida de forma tão violenta? O que seus filhos iriam sentir ao escutar o estampido da arma e quando alguém conseguisse entrar no quarto o veria ali, estirado na cama com a cabeça atravessada por uma bala por ele mesmo disparada? O que seria deles no futuro? Quais seriam seus traumas?

Jogou-se de costas na cama e continuou chorando.

- Papai? - perguntou a voz de Bia lá fora. - Você me ouviu? Eu te amo, tá? - e saiu correndo pela casa, voltando a pegar as bonecas com que estava brincando.

Luiz conseguiu se sentar novamente. As lágrimas tempestuosas vertendo-lhe no rosto enquanto controlava a respiração. Bia, com uma frase simples, havia acabado de salvar sua vida. Deus tinha agido, atendido orações feitas pela mãe daquela casa.

Não restava dúvida para aquele homem de que, segundos atrás, teria força e coragem, ou melhor, covardia o bastante para acionar aquele gatilho. "Resolveria" seus problemas e deixaria a família à própria sorte.

Envolvido com tantos problemas, esqueceu das coisas boas que ainda possuía. E não eram poucas. Valia a pena continuar seguindo em frente, por maiores que fossem as dificuldades. Valia a pena lutar e perseverar por sua família, pela esposa e pelos filhos. Sentiu algo que seu coração havia esquecido por um bom tempo: esperança. Só não sabia que outras trevas, naquele momento, também abandonavam seu quarto. Anjos celestes se colocavam ao seu lado e o Espírito Santo indicava onde Luiz devia depositar suas esperanças.

Levantando-se da cama, Luiz descarregou a arma e a colocou dentro da maleta. Se livraria dela na manhã seguinte. Foi até o banheiro da suíte e lavou o rosto, respirando fundo um ar que parecia ter nova potência em seus pulmões.

Ao abrir a porta do quarto, viu Bia sentada ao lado das bonecas, brincando com uma e outra. Luiz agachou ao lado dela e sussurrou-lhe aos ouvidos:

- Eu também te amo.

Ela sorriu e novamente se pendurou no pescoço do pai, dando-lhe um abraço apertado.

Pegou a maleta, ajeitou a gravata sob o paletó que já tinha vestido. Ainda restavam algumas horas daquele dia.

Passou por Eduardo e desarrumou seus cabelos.

- Até mais, filhão.

- Por que você vai sair de novo? - perguntou o garoto, sentando-se no sofá.

Luiz parou diante da porta aberta. Uma paz havia muito esquecida agora lhe aquecia o peito. Virou-se para o filho com olhar renovado e disse:

- Se a voz de uma criança pode mudar a vida de um homem, imagine o que este homem mudado pode fazer com o mundo.

Fechou a porta atrás de si e contemplou o céu azulado. Por algum motivo incompreensível, sentiu que a tempestade estava passando.

Conto originalmente publicado no site Outra Leitura

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